



ESTREIA DIA 20 DE ABRIL "...absolutamente a não perder" julio stockwell in advanced performance
Perdeste-os, depois encontra-los outra vez; esfregas os olhos e os filamentos explodem, proliferam.
Tempo passa, estás sonolento. Pousas o livro aberto ao teu lado na cama. Tudo é vago. A tua respiração é espantosamente regular. Um minúsculo insecto preto, muito possivelmente irreal, abre uma fresta nunca sonhada no labirinto de rachas no tecto.
(pg. 176)
Por vezes a escuridão forma primeiro o indistinto contorno de um às de espadas: à tua frente é o ponto do qual duas linhas partem, divergem, e depois regressam na tua direcção descrevendo uma longa curva.
Mais tarde é um oceano, um mar preto sobre o qual navegas, como se o teu nariz fosse o guia, ou a proa de um gigante navio. Tudo é preto. Não é de noite, nem está terrivelmente enevoado, é o mundo inteiro que é preto, naturalmente preto, como o negativo de uma fotografia, e só as ondas são brancas, ou talvez cinzentas, as ondas atiradas a cada um dos lados do teu nariz que avança, correndo a distância dos teus olhos que são talvez os lados do navio, no lugar onde, anteriormente, o ás de espadas estava inscrito, como se tivesse sido apenas o prelúdio desta vigilia este, quase branco, caminho ondulante que tu abres ao deslizar sobre a água preta. Estás completamente rodeado de água, um mar preto, imóvel, parado como um lago, sem a menor fosforescência, e no entanto tens a impressão de poder descobrir cada detalhe, o mais leve traço de uma nuvem se houvesse um céu, o mais pequeno ponto de terra se houvesse um horizonte. Mas há apenas o mar e tu não és mais do que esta aste, cortando sem esforço, silenciosamente, sem vibração, os profundos traços brancos da tua passagem, como um arado sulcando um campo.
Três quartos do teu corpo refugiaram-se na tua cabeça; o teu coração instalou-se na tua sobrancelha onde agora se sente bastante em casa, onde bate como uma criatura viva, apesar de, talvez, quando muito, um pouco apressadamente. Terás de conduzir o veículo do teu corpo, verificar se os teus membros, os teus orgãos, as tuas entranhas, as tuas membranas mucosas estão todas intactas. Gostarias realmente de esvaziar a tua cabeça de todas estas peças que a atravancam e a fazem pesar, mas ao mesmo tempo, congratulas-te por ter salvo tanto quanto pudeste, pois tudo o resto perdeu-se, já não tens pés, ou mãos, os teus gémeos transformaram-se em gelatina.
Tudo isto está cada vez mais complicado: o que deverias fazer primeiro era remover o cotovelo, e então, no espaço assim criado, podias colocar pelo menos uma porção da tua barriga, e por aí adiante até estares mais ou menos inteiro outra vez. Mas é terrivelmente dificil: há bocados que faltam, outros em duplicado, e ainda outros dão voz a exigências territoriais absolutamente dementes: o teu cotovelo é mais cotovelo que nunca, tinhas esquecido quanto um cotovelo pode ser cotovelo, uma unha tomou toda a tua mão. E este é, naturalmente o momento que os torturadores escolhem para intervir. Um deles enche-te a boca com uma esponja impregnada de giz, outro espanca-te nas orelhas com algodão em rama; alguns pit sawyers começaram a trabalhar nas tuas vias respiratórias, está um piromaniaco à solta no teu estômago, alfaiates sádicos comprimem-te os pés, forçam a tua cabeça a entrar num chapéu demasiado pequeno, apertam-te num sobretudo demasiado justo, estrangulam-te com uma gravata; um batedor e o seu peão introduziram uma corda com nós na tua traqueia e, apesar dos seus esforços, são incapazes de a retirar.
Vêem quase sempre. Conhece-los bem. É quase reconfortante. Se chegaram, quer dizer que o sono não pode estar longe. Fazem-te sofrer um pouco, depois aborrecem-se e deixam-te em paz. Magoam-te, isso é certo, mas tu tens relativamente à dor, como relativamente a todas as sensações, todos os pensamentos, todas as impressões que sentes, uma actitude de completa distanciação. Vês-te sem espanto ficar espantado, sem surpresa ser surpreendido, sem dor ser atacado pelos torturadores. Esperas que se acalmem. Concedes-lhes de boa vontade quaisquer orgãos que desejem. Ficas a observá-los à distância disputar o teu estômago, o teu nariz, a tua garganta, os teus pés.
(192,193)
George Perec, in Um Homem que Dorme
26
42 A confecção do jantar
George Perec, in La Boutique Obscure, 124 Rêves
O QUARTO DUPLO
Um quarto que semelha um devaneio, um quarto verdadeiramente espiritual, onde a atmosfera estagnada tem ligeiros tons de cor-de-rosa e de azul.
A alma toma nele um banho de preguiça, aromatizado pela saudade e o desejo. – É qualquer coisa de crepuscular, de azulado, e de rosado; um sonho de volúpias durante um eclipse.
Os móveis têm formas alongadas, prostradas, enlanguescentes. Os móveis parecem meditar; dir-se-iam dotados de uma vida sonambúlica, como os vegetais eoa minerais. As tapeçarias falam uma língua muda, tal como as flores, como os céus, como os sóis no ocaso.
Nas paredes nenhuma abominação artística. Relativamente ao sonho puro, á impressão não analisada, a arte definida, a arte positiva é uma blasfémia. Aqui tudo tem claridade suficiente e a deliciosa obscuridade da harmonia. Um odor infinitesimal do mais delicado gosto, a que se mistura certa humidade muito ligeira, flutua na atmosfera, onde o espírito sonolento é embalado por sensações de estufa.
A musselina chove copiosamente diante das janelas e diante do leito; espalha-se em cascatas de neve. E sobre o leito repousa o ídolo, a soberana dos sonhos. Mas como está ela aqui ? Quem a trouxe? ( … )
A que demónio benfazejo devo estar assim rodeado de mistério, de silêncio, de paz e de perfume ? Ó beatitude ! aquilo que nós chamamos geralmente a vida, mesmo na sua expressão mais feliz, não tem nada de comum com esta vida suprema de que eu tenho agora conhecimento e que eu saboreio minuto a minuto, segundo a segundo !
Não ! já não existem minutos, já não existem segundos ! O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade de delícias.
Mas um golpe terrível, pesado, ressoou na porta, e como nos sonhos infernais, pareceu-me que recebia um golpe de alvião no estômago.
E depois um espectro entrou. Era um meirinho que me vinha torturar em nome da lei; uma infame concubina que vinha gritar miséria e juntar as trivialidades da sua vida aos pesares da minha, ou talvez o salta pocinhas dum director de jornal que reclamava a continuação do manuscrito. (… )
A narrativa do sonho consiste na ramificação da tensão.
25 As duas peças
Devo actuar em duas peças de teatro.
No momento de entrar em cena apercebo-me de que não ensaiei, nem uma única vez o meu papel. A cena passa-se num grande hall-café-dormitório-cantina. Os actores estão à mesa. Ocupo o lugar de uma cadeira deixada livre mesmo na frente de cena.
O meu papel é o de uma espécie de vagabundo. Sobre a mesa há um pedaço de papel com algumas frases, mas o actor ao meu lado (que é também o encenador) inclina-se na minha direcção e sussurra-me que não é o meu texto.
Sou tomado por uma grande inquietação. Pouco tempo depois, conseguem passar-me uma ficha (mais do género de um papel de mercearia) com algumas indicações de texto. Devo confiar em alguns sinais dos meus colegas para saber quando é a minha vez de falar.
A peça começa.
Estou perdido. Tenho a impressão de falar a torto e a direito. Felizmente o autor escreveu um texto muito descosido. È mais um género de brua-brua.
Ao fim de algum tempo de considerável aborrecimento (arruino o trabalho dos outros), a
polícia chega ao fundo da sala.
Isto faz parte da peça.
Grande confusão.
Passa-se à segunda peça.
É um acto com três personagens. Desempenho o papel de um urso (ou será o diabo?) e à minha frente está Fausto e Margarida, ou talvez D.João e Faustina. Alguma inquietude com o meu texto enquanto me trazem a pele que devo vestir. São sobretudo grunhidos.
Há alguém que sonha.
Alguém encerrado no sono que quer sair da sua prisão,
que não se resigna a estar submerso
O que dorme retirou-se do lugar da visão
deixou de ver
não está presente
Nos sonhos há sempre uma história
a pequena história a história mínima
desvanecem-se
Há um país soberbo, um país de Cocanha, digamos que eu sonho visitar com uma velha amiga. País singular, naufragado nas brumas do nosso Norte, e em que poderia chamar a oriente do Ocidente, a China da Europa, tantas largas ali se deu a uma fantasia ardente e caprichosa, tanto a ilustrou, paciente e obstinadamente, com as suas sábias e delicadas vegetações.
Um verdadeiro país de Cocanha, onde tudo é belo, rico tranquilo, honesto; onde o luxo sente prazer em se remirar na ordem; onde a vida é gorda e doce de respirar; onde a desordem, a turbulência e o imprevisto são excluídos; onde a felicidade é casada com o silêncio; onde a própria cozinha é poética, ao mesmo tempo gorda e excitante ( … )
Charles Baudelaire, in O Spleen de Paris
CUCAÑA (1). (No confundir com Cucaña (2).) Pequeño país cerca de Alemania al que, segúm algunos viajeros, se puede acceder por un rio, En el centro de la región se yergue el Mecca, un volcán de caldo hierviente. De sus entrañas expulsa raviolis y otras pastas que caen rodando por sus laderas cubiertas con queso y van a dar a un valle de mantequilla derretida que corre a sus pies. El viajero que visite Cucaña verá monos que juegan al ajadrez, la família real que duerme tres años seguidos en su lecho de salchichas, faisanes asados que se ponen a correr al son de las trompetas y capones que lluven del cielo. El suelo da trufas grandes como casas y los rios son de leche o vino. En invierno, las montañas se cubrem de queso cremoso y durante todo el año deliciosos pasteles redondos brotan a la vera de los caminos. Las casas están hechas de toda clase de comida italiana y los puentes son enormes salchichones. Los carruajes circulan solos, no necesitan caballos. Los arboles dan grandes cantidades de fruta.
El que desee rejuvenecer podrá bañarse en las aguas de una pequeña fuente que hallará a su disposición. Las mujeres dan a luz cantando y los recién nacidos hablan y caminan antes de nacer. Allí, el que más duerme más gana. Al que sorprenden trabajando lo mandan inmediatamente a prisón.
(Anónimo, Capitolo di Cuccagna, siglo XVI; Anónimo, Storia del campriano contadino, siglo XVII; Anónimo, Trionfo dei poltroni, siglo XVIII)
(Anónimo, Le Dit de Cocagne, siglo XIII; Marc-Antoine Le Grand, Le Roi de Cocagne, Paris, 1719
Entre o contínuo que serve de fundo ao ser que dorme, à vida que se detém para prosseguir, e a atemporalidade, nascem os sonhos, esta pseudovida ou vida primeira, manchada na sua origem por ter de abrir caminho, por não ser dada num meio inteiramente apto para a receber. Uma vida que procura o seu lugar, que desce. Pois é a vida de alguém que a deixa cair, que cai ele próprio.
Aquele que entra no sonho desprende-se de si mesmo, desprende-se da sua vida e fica a flutuar (…)
Maria Zambrano, in Os Sonhos e o Tempo
Sonho : consciência parcial fragmentária, e intermitente dos membros, dos orgãos internos ou da pele.
Sonho : Um grande pedaço de homem que dorme e um pequeno pedaço que está acordado.
A perna é inteligente. Todas as coisas o são. Mas não reflecte como um homem. Reflecte como uma perna.
A perna não é estúpida, não caminhará sobre óleo ou bolas de sabão, não tentará fazer renda.
Lógica da perna.
Mas a perna despir-se-á no meio dos senadores, ou numa conferência de suffragettes, ou em propriedade privada. O público, a paisagem não interessam à perna; não lhe dizem respeito.
A lógica de um pedaço de homem é o absurdo para o homem total.
Carácter do sonho : o sonho é absurdo.
A perna é sensível.
Não tem emoções de homem. Tem emoções de perna.
A amizade, a contemplação? Não lhe dizem respeito.
As imprecações da Bíblia? Uma tela de Degas? Digo que a perna passará ao largo.
Mas eis um pijama, areia fina. Ah! Ou espinhos que magoam!
Emoção da perna.
A emoção de um pedaço de homem é indiferença e frieza para o homem total.
Carácter do sonho : Insensibilidade! Desafectividade.
(...)
H. Michaux
O ESTRANJEIRO
- De quem gostas mais, diz lá, homem enigmático? De teu pai, de tua mãe, de tua irmã, ou de teu irmão ?
- Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
- Dos teus amigos ?
- Eix uma expressão que até hoje ignorei.
- Da tua Pátria ?
- Não sei a latitude em que está situada.
- Da beleza ?
- Amá-la-ia de boa vontade, divina e imortal.
- Do Ouro ?
- Odeio-o tanto como vós a Deus.
- Então que amas tu singular estrangeiro ?
- Amo as nuvens … as nuvens que passam … lá longe … as maravilhosas nuvens !
Charles Baudelaire, in O Spleen de Paris
Nubes, Monte de las. Monte situado en una región distante seis meses de navegación desde Basora, en Irak, probablemente a orillas del Índico. Sería conveniente que el viajero se dejara acompañar por algún mago persa entendido en alquimia, pues estas personas son las únicas que se orientan con facilidad hasta el Monte de las Nubes. Recomendamos, no obstante, mucha prudencia, pues tienen asimismo la costumbre de sacrificar a sus acompañantes en sus experimentos alquímicos. (….)
Ya en tierra firme, el viajero dejará solo al mago al pie de la montaña. Entonces, una nube de polvo se levantará del suelo y, poco a poco, adoptará la forma de tres hermosos camellos, en uno de los cuales montará el viajero. Siete días más tarde, llegará a un edificio que semeja una cúpula, apoyado sobre cuatro columnas de oro rojo, y a un palacio grande y magnífico habitado por las hijas de un rey. Estas doncellas harán lo posible para que el viajero olvide su destino, pero si prosigue verá, al fin, una multitud de nubes diseminarse de este a oeste: está es la montaña que el viajero busca.
Sólo hay una manera de subir al Monte de las Nubes : el viajero matará uno de los camellos, lo desollará, se meterá dentro de la piel y luego la coserá con cuidado y aguardará a que venga un buitre, lo agarre e se lo lleve. El ave depositará la piel de camello en cima de la montaña; el viajero, entonces, habrá de salir de su envoltorio, dará gritos para espantar al buitre (es necesario ensayar antes los gritos) y podrá explorar la montaña a su gusto. ( … )
(Anónimo, Las mil e una noches, siglos XIV – XVI)
(…) Todo o sonho é uma viagem. E por isso paramos neles como numa cidade ou lugar estranho onde nada podemos fazer. Todo o sonho nos deixa como costumamos ficar num lugar desconhecido onde chegámos por engano. Nesse sentido, diria que todo o sonho, por mais agradável e venturoso que seja, aparece como um engano, melhor como um acaso; apresenta-se como um acaso, algo a que chegámos por sorte ou por infelicidade, sem saber, sem fazer caminho.
(…) Os sonhos acontecem-nos. Falta o ir, o caminho (…) e por isso é uma viagem e um feitiço. Um estar enfeitiçado.
(…)
Mas todo o sonho é também uma viagem encantada. Viagem porque há neles um movimento que, no entanto, não impede o facto de não haver caminho. Um movimentar-se sem caminho é um errar, um andar errante. E assim, aquele que anda errante encontra-se de repente perante algo estranho. Estranho mesmo sendo conhecido e até familiar.(…)
PAISALQUENUNCALLEGAS. Pequeño país de localización desconocida y rodeado de un bosque immenso. Una extraña pradera conduce a un claro donde hay algunos robles, castanõs y palmeras. A los lejos se distinguem el mar azul y unhuerto de manzanos que crece en una franja de tierra negra. Un arroyuelo atraviesa el país y desemboca en el mar. Al norte, en una pequeña bahía colmada de nenúfares y lotos, rodeado de cocoteros y naranjos, se yergue un castillo enorme. Al otro lado hay una aldea, desde donde se puede ver en toda su extensión el Paisaquenuncallegas. Lo cierto es que es imposible visitarlo, pêro a veces uno puede contemplarlo a través del recuerdo de algún objeto querido : un libro de la infância, unas flores secas dentro de un diário íntimo o una rama de manzano entrevista trás las cortinas del dormitório de outra persona.
(André Dhôtel, Les Pays où l’on n’arrive jamais, Paris, 1955) – in Breve guia de lugares imaginários de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi