ESTREIA DIA 20 DE ABRIL "...absolutamente a não perder" julio stockwell in advanced performance

r. das taipas IX




O QUARTO DUPLO

Um quarto que semelha um devaneio, um quarto verdadeiramente espiritual, onde a atmosfera estagnada tem ligeiros tons de cor-de-rosa e de azul.

A alma toma nele um banho de preguiça, aromatizado pela saudade e o desejo. – É qualquer coisa de crepuscular, de azulado, e de rosado; um sonho de volúpias durante um eclipse.

Os móveis têm formas alongadas, prostradas, enlanguescentes. Os móveis parecem meditar; dir-se-iam dotados de uma vida sonambúlica, como os vegetais eoa minerais. As tapeçarias falam uma língua muda, tal como as flores, como os céus, como os sóis no ocaso.

Nas paredes nenhuma abominação artística. Relativamente ao sonho puro, á impressão não analisada, a arte definida, a arte positiva é uma blasfémia. Aqui tudo tem claridade suficiente e a deliciosa obscuridade da harmonia. Um odor infinitesimal do mais delicado gosto, a que se mistura certa humidade muito ligeira, flutua na atmosfera, onde o espírito sonolento é embalado por sensações de estufa.

A musselina chove copiosamente diante das janelas e diante do leito; espalha-se em cascatas de neve. E sobre o leito repousa o ídolo, a soberana dos sonhos. Mas como está ela aqui ? Quem a trouxe? ( … )

A que demónio benfazejo devo estar assim rodeado de mistério, de silêncio, de paz e de perfume ? Ó beatitude ! aquilo que nós chamamos geralmente a vida, mesmo na sua expressão mais feliz, não tem nada de comum com esta vida suprema de que eu tenho agora conhecimento e que eu saboreio minuto a minuto, segundo a segundo !

Não ! já não existem minutos, já não existem segundos ! O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade de delícias.

Mas um golpe terrível, pesado, ressoou na porta, e como nos sonhos infernais, pareceu-me que recebia um golpe de alvião no estômago.

E depois um espectro entrou. Era um meirinho que me vinha torturar em nome da lei; uma infame concubina que vinha gritar miséria e juntar as trivialidades da sua vida aos pesares da minha, ou talvez o salta pocinhas dum director de jornal que reclamava a continuação do manuscrito. (… )

Charles Baudelaire, in Spleen de Paris

A narrativa do sonho consiste na ramificação da tensão.

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